quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Texto lido por Dr. Domingos Alves na sessão de apresentação do livro "Luas de Gengibre" de Maria do Sameiro Barroso



Nem sempre se torna fácil, como a própria autora reconhece, a análise da obra poética de Maria do Sameiro Barroso, nomeadamente a sua mais recente, “Luas de Gengibre”, sobretudo para quem, de modo simples e singelo, mais não pretende do que descodificar aquilo que muitos consideram ser uma tarefa quase impossível: penetrar no âmago da verdadeira mensagem poética. Com efeito, o sujeito poético é um artista e, como tal, só ele – e verdadeiramente só ele – consegue desmascarar, digamos assim, o produto do seu ato criador e, às vezes, diria que nem mesmo ele… Ao crítico/analista, por conseguinte, apenas sobra o apelo consciente e honesto do recurso à sensibilidade poética de que for capaz e que em todos e cada um de nós por certo existe. 

Mais do que o enquadramento literário numa qualquer escola ou movimento modernista, a poesia de Maria do Sameiro Barroso, em “Luas de Gengibre”, como em outras obras suas, pode considerar-se como” uma poesia de rutura”, nas sábias palavras de Teresa Rita Lopes. Poesia de inspiração oriental, onde é bem manifesto o simbolismo de palavras que chamam outras, numa relação pouco comum, mas ainda assim irmanadas num singular contexto melódico.

Marcada pelo surrealismo e expressionismo alemães (movimentos que mais a influenciaram), a poesia de Maria do Sameiro Barroso não deixa, mesmo assim, de seguir um itinerário bem pessoal e, por isso mesmo, jamais subjugante. De poesia luminosa voltada para a natureza, e por vezes percorrendo também a noite e as trevas, mas sempre com o regresso marcado ao iluminismo, ao sol que aquece, ilumina e dá vida, a autora é, de facto, uma pessoa muito solar! “A luz absorve-me / De tudo o que é vivo me impregno”… “A aurora filtra-me por entre os seus xailes de seda”… (pág. 9). E ainda que diga que “com trevos da noite me cobri” / das poções da morte, bebi”… (pág. 22) é, todavia, nas montanhas que se ouvem tordos / cantores, / as torres mais altas libertando / os itinerários de luz.” (pág. 23.)

Torna-se, pois, evidente uma espécie de solidariedade antagónica quando o sujeito poético não hesita em afirmar: “Convivo com a noite, com os segredos / Convivo com a luz, e com os seus antídotos / por entre cisnes, cavalos, corvos celestes…” (pág. 33).

Também o elemento aquático assume primordial importância em “Luas de Gengibre”, como se pode ver logo no 1.º verso do primeiro poema: “O mundo começou na aurora aquática”… Elemento fundamental da vida, a par da terra, do fogo e do ar, é na água e nos sonhos, como muito bem salienta Alfredo Pérez de Alencart, poeta de Salamanca, que o sujeito poético encontra a melhor ancoragem para proteger o seu perfil de todas as ignições banais: “Ecoam as palavras pela água, os astrolábios / os relógios de sol / as clepsidras gotejando, na senda das palavras / e dos trevos”… (pág. 8). E também: “Os rios nunca deixam de correr porque precisamde inundar o corpo, o sangue” (pág. 24); ou, finalmente ainda, nesta bela referência clássica, igualmente uma das grandes fontes de inspiração poética de Maria do Sameiro Barroso: “As ninfas, que poalha as tece? / que olhar as define? / Na orla dos mares e dos rios, assomam / nereidas, náiades, corpos transparentes…” (pág. 30).

A propósito, não resisto – até pelo gosto que a autora nutre pela cultura, nomeadamente a clássica – de citar um pequeno texto da sua autoria, aliás bem recente, inserto no suplemento Cultura do “Diário do Minho” (de 04-09-13), a propósito de uma taça de prata romana descoberta em 1979 nas Termas Romanas do Alto da Cividade, verdadeiro “ex-libris” do Museu D. Diogo de Sousa, segundo a opinião abalizada do arqueólogo Rui Morais: “Os objetos arqueológicos sempre foram para mim objetos poéticos, em seu estado natural que ampliam e dilatam a nossa identidade antiga, descodificam o seu quotidiano, transformam-nos em seus espetadores, sugam-nos para dentro da sua vivência íntima e telúrica. Testemunhando o culto e os rituais da morte, aspiram-nos para as suas fendas, cobertas pelas suas múltiplas feridas que aclaram a vida e o silêncio, deixando-nos antever o mistério das essências mais puras. A arqueologia é uma espécie de autópsia gigantesca que brilha na grande noite dos seus órgãos esquecidos.”

Voltando agora às “Luas de Gengibre”, nestas “trinta perlas capturadas en las aguas de sus sueños más reales o de experiencias que resucitan, a fuego lento, desde la gran temperatura de su corazon” (pág. 5) – acabei de citar as primeiras linhas do prefácio de Alfredo Alencart –, não podia deixar de referir a profunda e sincera evocação de uma vivência amorosa muito intensa que percorre vários títulos de “Luas de Gengibre” e onde, curiosamente, marca presença frequente o elemento aquático, numa relação eu/tu, a que não podemos ficar indiferentes: O amor é lodo entumescido (pág. 10); nas águas, as palavras de um amor desprendem-se / no estranho sabor das lágrimas (pág. 10)…; O teu corpo era o paradigma das águas luminosas (pág. 11); no entanto, Do outro lado das montanhas, as palavras / disfarçavam já armadilhas rigorosas…” (pág. 13), mesmo vivendo o primeiro amor (pág. 15) de um tempo que era precioso e único / no teu rosto imenso e breve… (pág.15); Olho, como tu, as manhãs, os riosas mãos que escrevem. / Aguardam-te os famintos animais, / um beijo contido nas horas. / Na carqueja do silêncio, recordas ainda / um pedaço de pão comido no céu.Nele guardas um gesto puro, / um som inquieto, um murmúrio de mar. / Outrora, antes da cinza nos corroer, / traduzíamos as águas, as quimeras, / sabíamos das montanhas, das águias, / da terra e da sua sábia singeleza / das montanhas…” (pág. 17). Evocação de um amor que, infelizmente, até parece não ter dado certo, mas que se recorda talvez, apenas, com uma saudade algo envergonhada, mas nem por isso menos inevitável.

E a evocação amorosa como que desagua as suas mágoas no poema “Penas de Pavão” (pág. 34): Durmo na recordação da tua bocasobre a minha./Como açúcar rosado, a tua língua,/ o teu abraço,/ as tâmaras dulcíssimas. / Durmo abraçada a ti, na recordação / guardada numa noite de chuva. / Durmo sobre o que resta das noites/ eternas. / Sobre ti dormem os moinhos do tempo / os cristais verdes, a boca rubra, / a sede infinita. / Durmo na cinza acesa do passado. / Esqueço-te e esqueço-me. / Entre rizomas lenhosos na forma / das letras que envolvem o céu / as raízes dispersas reúnem-se / nos campos infinitos,e os olhos descansam / em penas de pavão.

Nada mais resta, pois, senão a nostálgica recordação das coisas boas, e o esquecimento possível de um passado algo frustrante e doloroso.

Uma outra característica da poesia de Maria do Sameiro Barroso é, sem dúvida, a importância, diria mesmo: o severo respeito, que à autora merece o termo Palavra. De novo passo a citar o que diz Alfredo Alencart: “Lo suyo es PALABRA que funda su domínio amputando burdas retoricas, inocências fingidas a que nos tienen acostumbrados, fogonasos estériles puestos en verso…” (pág. 5). Vejamos, então, alguns exemplos: A luz absorve-me. / De tudo o que é vivo me impregno. / A aurora filtra-me por entre os seus xailesde seda. / Bebo o elixir das palavras, / quando o silêncio resvala / e os crisântemos afagam a estrela / que se desnuda no centro prateado / da noite das esfinges. (pág. 9); Do outro lado da sombra, as palavras / disfarçavam já as armadilhas rigorosas… (pág. 13); Os rios nunca deixam de correr porque precisam / de inundar o corpo, o sangue, os violinos de mármore, / as estrelas que não pulsam. / As palavras são seres esdrúxulos onde os rios bebem. / Por elas, me apago, me acendo. (pág. 24); São ágeis as palavras, talhadas nas pedreiras negras, / lembram loureiros frios, brancas avenidas,rebanhos que ordenho entre emboscadas de luz. / É lá que roubo o corpo aos anjos, confisco-lhes / a aura, o sangue, depois embriago-me / no segredo exangue do seu mais puro veneno. / São ágeis as palavras, como brancos loureiros,talhados na urze. / É nelas que descubro o teu segredo, / perscruto a sombra, degluto as poções / negras. / Depois, lavo o meu cérebro na luz das tuas mãos, / dispo-me do tempo, percorro o céu, / o mar, de novo envergo o sol / e envolvo-me na roupagem quente / de amoras, arco-íris, / digo os frutos que têm o teu sabor, / o meu sabor, / e digo os teus lábios, cálices rubros, / prelúdios de orvalho, veludo da manhã. (pág. 28). É, pois, nesta sequência de referências, que simultaneamente nos manifestam sentimentos, desabafos e paixões, que surge, em “Luas de Gengibre”, a decisiva importância da Palavra, como verdadeiro aglutinador de todos eles. Daqui resulta, naturalmente, uma linguagem decantada, retilínea e firme, com frequentes antíteses/oxímoros, para além de assíndetos e polissíndetos, e que a tornam ainda mais cumulativamente assertiva, bem ao contrário de muitas outras que não resistem à fácil tentação das “igniciones banales”, para de novo citarmos Alfredo Alencart.

Não obstante a mundividência temática dos versos de Maria do Sameiro Barroso, resultante não só da sua inspiração poética, como também da sua profissão de médica — que neste caso mais parece funcionar como “pausa/alívio” das suas preocupações interiores – a força da palavra constituirá sempre, e por certo, uma das imagens de marca da sua poesia: Numa praia deserta, o crânio rebocado / pelos abutres arrasta pensamentos, pálpebraspesadas. / Os ouriços do mar preenchem as suas órbitas / descarnadas. / Só os cadáveres inteiros são presa dos astros. / Aqui, os pedaços de cérebros despedaçaram-se, / há muito nas falésias do sono. / Há muito, os pedaços de céu soçobraram,despenhados nas ondas. / Tudo se resgata, no entanto, nas fileiras / da noite… (pág. 21).

Os termos são, por vezes, de um realismo bem duro e, de algum modo, até reveladores de uma certa fragmentação quase psicótica de estranhas sensações em que, por vezes, o sujeito poético se deixa conscientemente enlear… Tal como para Urbano Tavares Rodrigues, recentemente falecido, também para Maria do Sameiro Barroso ter “amor à palavra, é ter amor à vida”.

Para finalizar esta pequena reflexão, e tendo ainda em conta o caráter de certo modo autobiográfico de “Luas de Gengibre”, permitam-me que vos cite o que, a propósito, recentemente dizia a professora Lisete Henriques, numa bela recensão de “Luas de Gengibre”: “«As Luas de Gengibre» levam-me a refletir sobre a Beleza e a profundidade desta Poesia substantiva em que a inteligência dos sentidos espelha e transmite emoções e nos envolve, porque abrange a Plenitude da Vida”. E como igualmente bem lhe assenta o que há milénios já dizia o grande poeta latino Horácio na sua famosa “Arte Poética”: “Non satis est, pulchra esse poemata; dulcia sunto et, quocumque uolent, animum auditoris agunto” (não basta que os poemas sejam belos: força é que sejam emocionantes e que transportem, para onde quiserem, o espírito do ouvinte). Já lá vão também quase dois mil anos, e assim proclamava o famoso poeta, filósofo e dramaturgo Públio Terêncio: “Homo sum: nihil humani a me alienum puto…”, que podemos traduzir mais ou menos da seguinte maneira: “sou homem, e nada do que é humano me é estranho” – ou ainda talvez melhor: ”sou homem, e nada do que é humano me é indiferente. Que bela máxima intemporal, certamente tão do agrado de Maria do Sameiro Barroso e da mensagem poética que nos apresenta nas suas “Luas de Gengibre”!



Notas bibliográficas:

– “Arte Poética” – HORÁCIO; Clássicos Império; Edição bilingue; Introdução, Tradução e Comentário de R.M. Rosado Fernandes, da Faculdade de Letras de Lisboa; 3.ª edição; Editorial Inquérito, Limitada; Lisboa, 1984.

– “As Vindimas da Noite” — BARROSO, Maria do Sameiro; Ed. Labirinto; Amarante; Maio de 2008.

– “Luas de Gengibre”- BARROSO, Maria do Sameiro; Ed. Labirinto; Amarante; 2013



Braga, 19 de Setembro, de 2013.

Domingos Alves