quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Texto lido por Alice Macedo Campos na sessão de apresentação do livro "Luas de Gengibre" de Maria do Sameiro Barroso


Maria do Sameiro Barroso criou neste livro um mundo começado na “rosa de metal nascida a oriente” (pág. 7), que me faz pensar num lugar único, singular, habitado pelas “luas de gengibre”, que são título do poema contínuo que nos é dado ler. Trata-se, portanto, de uma dádiva, que acolho gratamente.

“Na senda das palavras” (pág. 8), a autora evoca Camões, relembrando as viagens que levaram Portugal ao mundo e deram mundo a Portugal. Pleno de versos líquidos e solares, o poema aproxima, deste modo, os dois mundos, oriente e ocidente, fazendo-me acreditar que também eu poderei alcançá-los.

“A luz absorve-me”, diz a autora em “Caligrafias Nocturnas” (pág. 9). A imagem que estas palavras projectam é de grande serenidade e esperança. A leitura é deveras tranquilizante, faz-me respirar outro oxigénio diferente do que me rodeia, que na verdade é já o oxigénio que as palavras do livro transpiram.

Esta viagem emocional que “Luas de Gengibre” nos proporciona é um momento de elevação; o nosso espírito está deserto e, lentamente, é povoado de sons, o ambiente do poema é melodioso e carismático, provocando-me uma espécie de saúde mental.

“O teu corpo era o paradigma das águas” (pág. 11). Pela primeira vez no poema, surge a segunda pessoa do singular. O mundo foi-nos descrito e agora surge o elemento humano que pode enfim transformá-lo em verdade. Digamos que, da metáfora até aqui criada, a autora uniu, através do cordão umbilical das palavras, o mundo ao corpo, diminuindo ainda mais a distância entre o livro e o leitor. Neste momento, já me sinto inteiramente contextualizada neste livro, pois é ao ‘meu’ próprio corpo que ele canta.

“As pedras pernoitam no ser” (pág. 12). Este é para mim um dos mais belos versos do livro, e aquele que em definitivo faz a ponte entre a ficção e a realidade. O ar que me rodeia envolve-se na atmosfera deste ser, principiando a fusão entre mim e o ser, até ao ponto de não haver nada que nos afaste. Um útero onde o silêncio crepita com o suave afago da mão poética que o cobre.

Mas eis que a poeta não pode evitar que a natureza humana interfira neste mundo aparentemente feérico. Sem macular a paz instalada, dá o alerta de que “As palavras disfarçam armadilhas rigorosas” (pág. 13). Sabe-se que a beleza tem asas nas costas e mel na língua. No entanto, a poeta reconhece as sombras que se instalam, prevenindo-me para os cuidados a ter no caminho.

A referência à “solidão”, na página seguinte, vem confirmar esta certeza de que até num mundo perfeito há espaço para que o indivíduo reflicta diante de si mesmo, mirando-se ora no espelho do que deseja, ora no poço do que teme. Contudo, nenhuma solidão está satisfeita sem amor, e logo a autora nos fala dessa vivência mais à frente. Note-se como essa emoção é personalizada com a expressão “no teu rosto imenso e breve”. De um corpo até aqui informe, com o qual confundi o meu, ao ler, vejo o meu próprio rosto no que leio.

Segue-se naturalmente a alusão a tudo o que perece. Embora o poema cumpra o ciclo do nascimento, da vida, e da morte, não imita o quotidiano que vivemos; antes porém o anula, subtraindo-lhe urbanidade, para assim destacar pontos de luz que diariamente apagamos. Essa iluminação aumenta quando o poema refere os “poemas que assomavam”. Não se trata, a meu ver, de figura de estilo ou pleonasmo. A autora duplica, faz gerar um verso noutro verso, uma água em múltiplas águas, causando uma sensação de liberdade e vento, até que “um rio te revolve”.

“Costumo levantar-me cedo para escrever as aves”, é outro belíssimo verso deste livro. O escritor recebe em si o voo que o espanta, e usa as mãos para libertar de novo as pombas benignas, “louvando a beleza frágil”, “na flor matinal da perfeição”.

Surgem entretanto alguns “deuses” que, pela noite, velam as actividades indispensáveis à continuação do poema. Imagens dolorosas dão lugar a ânimo, como se nunca tivesse escurecido e a manhã crescesse ao longo do tempo, na perseguição da “flor perfeita”. Esta flor é a própria Maria do Sameiro Barroso, ou essa confirmação não chegasse, quando diz: “Sou tão viva e exacta como as quimeras que me moldam”.


Alice Macedo Campos
18 de Setembro de 2013