terça-feira, 5 de janeiro de 2016

O 50º ANIVERSÁRIO da RUSGA DE S. VICENTE

Rusga: “É gente que vai, faz e vem das festas…”


1. “A Rusga de S.Vicente / Grupo Etnográfico do Baixo Minho” é hoje, indiscutivelmente, uma referência cultural de prestígio para a cidade que a viu nascer; sem dúvida, uma digna representante de toda a região geo-etnográfica baixo minhota – quer a nível regional e nacional, quer mesmo a nível internacional – enquanto Associação que visa o estudo, salvaguarda, divulgação e promoção de um vasto património de valor inestimável, através de uma forte dinâmica merecedora de especial referência.

“Até finais da década de 70, a Rusga existia quase exclusivamente por ocasião das festividades do S. João desaparecendo, quase de imediato, até ao ano seguinte. Na década de 80, porém, entramos num novo ciclo” – esclarece José Pinto, então um jovem ligado aos escuteiros e que entusiasticamente acedeu ao convite do “Fecisco” para com ele partilhar os destinos da Rusga, acabando por ficar até hoje, agora como actual presidente e director artístico do Grupo, já formalmente instituído como Associação.

Corria o ano de 1965, alguns dias antes dos tradicionais festejos da cidade de Braga (S.João da Ponte), encontrando-se o Fecisco (José Teixeira Gomes Machado) e o Gaspar Maleiro (Gaspar da Silva Ferreira) numa das suas habituais “cavaqueiras” nocturnas quando, ao recordar velhos tempos, vêm à baila as festas e romarias de antigamente. Logo concluíram que aquelas estavam a perder qualidade e popularidade de ano para ano, tendo como exemplos evidentes o Arraial de Santa Marta da Falperra e os Festejos Sanjoaninos da Augusta cidade. 

É nessa altura que se lança a ideia de se juntarem alguns amigos tocadores (concertina, bombo, ferrinhos e reque-reque) e, ao som destes, irem Avenida abaixo cantando e dançando para depois, uma vez chegados ao terreiro da grande romaria de S.João da Ponte, aí comerem e beberem do merendeiro.


Rusga primitiva


Nascida, pois, de um acto consciente e de um esforço conjugado, a Rusga chega até aos nossos dias – passadas que são cinco décadas - mercê de uma salutar teimosia e enorme persistência, de extremosas dedicações e de um trabalho intenso levado a cabo por um punhado de homens e mulheres que, ano após ano, se vão continuamente rejuvenescendo, e assim a vão mantendo, sempre bem viva e actuante, como fiéis depositários da cultura popular, verdadeiro legado/ herança dos seus antepassados.


2. Paralelamente à intensa actividade étnico/folclórica de todos sobejamente conhecida e apreciada, quer em Portugal, quer além fronteiras, para onde é frequentemente convidada – como aconteceu, por exemplo, no passado mês de Agosto, quando representou Portugal no XXIX Festival de Folclore da cidade de Corunha, ao lado de outros grupos - mais concretamente o “Fan Yu Dancing Ggoup”, de Taiwan, o “Grupo Folclórico Vallastra Azteca”, do México e o “Grupo Assiciación de Coros e Danzas de Eidos”, da Corunha – a Rusga de S.Vicente / Grupo Etnográfico do Baixo Minho, de igual modo se tem notabilizado pela organização de outras iniciativas culturais não menos portadoras de significativo e justificado interesse cultural: os muito típicos e famosos “Serões do Burgo/Tertúlias Rusgueiras”, geralmente de periodicidade mensal, nascidos em Janeiro de 2004, e que até ao presente contabilizam já perto de uma centena de sessões, com muitos e ilustres convidados/especialistas oriundos das mais diversas áreas, desde a ciência à política e culinária. Estas iniciativas vieram, sem dúvida, imprimir um ritmo diferente à vivência cultural da cidade, destacando-se pelo seu papel ao nível da intervenção cívica. De entre estes, uma breve referência ao Serão/ Tertúlia realizado em Dezembro de 2013 e cujo tema “Alminhas – crença e cultos” teve como convidado especial João Duque. Para este teólogo e professor da Universidade Católica, as Alminhas “são locais que nos remetem para memórias e saudade mas, fundamentalmente, locais públicos de oração, sendo essa a razão de considerarmos esse culto verdadeiramente democrático, ou popular, que chega aos nossos dias, com mais ou menos vigor, trespassando séculos de história e fé”.


3. Aliás, esta temática “serviu de mote ao excelente projecto “Alminhas”, da Rusga de S.Vicente, sob a coordenação científica da Drª Aida Mata. Segundo esta especialista, “o trabalho resultou num repositório que conta com mais de 150 nichos de Alminhas - na sua maioria bem conservados - inventariados através de fichas de registo e respectiva sinalização no território, cobrindo todas as freguesias do concelho bracarense (…).” Trabalho ímpar, sem dúvida, que deu origem à exposição Alminhas de lá, património de cá, que teve lugar em Novembro de 2014 e que desde logo contou com o apoio da Câmara Municipal de Braga para, com as Juntas de Freguesia se disponibilizar, tendo em vista uma futura publicação. Até ao momento, e segundo a Drª Aida Mata, “ainda não foi possível concretizar esta ambição, que passaria por um livro/DVD, inicialmente orçado em 14 mil euros”; no entanto, a mesma está convicta de que “a publicação há-de sair neste ou noutro formato, porque é um trabalho notável, que não se pode perder”. Assim o desejamos e, sobretudo, assim o esperamos…

Igualmente inserida na temática do Além, refira-se a excelente encenação da “Encomendação, Botar ou Lançar as Almas” – Memórias de um ritual, que teve lugar em Março de 2013 no Miradouro do Sagrado Coração de Jesus, Campus Camões, da Univ. Católica, sito na rua Camões, freguesia de S.Vicente, tendo como convidada a Drª Alexandra Esteves. Segundo esta especialista, “já em 1254, no tempo do Papa Inocêncio IV, era conhecido o ritual ligado ao culto das almas (“as almas eram purgadas dos seus pecados através do sofrimento pelas chamas e das orações dos fiéis devotos”). Só depois de expiados os seus males e “limpas” das suas “faltas”, elas estariam em condições de ir para o “Reino da Glória”. Igualmente o Concílio de Trento, sobretudo através das confrarias implementadas pelas Ordens Religiosas, apelava à necessidade de “orar pelas almas do Purgatório”. Em 1537 o Arcebispo de Braga mandava que se rezasse “pelas benditas almas do Purgatório”.

Este “Culto de Encomendação das Almas”, como também o “Culto das Ave Marias” e das “Trindades”, era habitualmente protagonizado por grupos de mulheres, ainda que, por vezes, o fosse também por homens ou, então, conjuntamente por homens e mulheres. As chamadas lançadeiras, ou lançadores, do “Deitar das Almas”, pelas “Trindades”, subiam aos lugares mais altos das aldeias, empoleirando-se em árvores, para daí lançarem o ritual cantado. Nas cidades também se praticava este ritual; eis a letra de um dos espécimes recolhidos pela Rusga, lançados a partir do “Penedo da Moura”, espaço contíguo ao reservatório da Rua Camões, em S.Vicente:


Alerta, alerta

A vida é curta

E a morte é certa…

Ó irmãos meus,

Filhos de Nosso Senhor

Jesus Cristo;

Quem puder

Reze um Padre Nosso

E uma Avé Maria

Pelas benditas almas

Que estão no Purgatório…



Representação do “Botar ou Lançar das Almas”


A manifesta variedade temática destas iniciativas da Rusga de S.Vicente estende-se por outras áreas, nomeadamente pela diversão/folguedo como acontece, por exemplo, no Carnaval com a muito curiosa corrida do entrudo “ olha o home, lá bai o home”, mai-la sugestiva e cómica leitura do “testamento do Libório Caturra,” sempre tão do agrado de miúdos e graúdos, ou pela participação, agora já mais de âmbito cívico/cultural, a partir de 2009, como foi o caso dos chamados “Rusgos Vicentinos” - cujo objectivo primeiro foi “dar a conhecer, com o apoio, acompanhamento e análise crítica de especialistas, diversos locais de interesse histórico e etno/histórico, dentro e fora da cidade, exemplos do Museu de Arqueologia D.Diogo de Sousa e do Museu da Imagem”, segundo as palavras de José Pinto. 



Queima do home (Entrudo)


4. A recordação histórica dos “usos e costumes” é também magnificamente concretizada pela produção de “Um casamento Minhoto, inícios da segunda década do século XX” encenação já levada a cabo em diversas localidades, inclusive Braga, Porto, (Teatro da Trindade) e Lisboa (Aula Magna), com honras de reportagem televisiva. Para quem ainda não viu, aqui vai uma nota introdutória: “A reposição deste trecho etnográfico - “ Um casamento Minhoto” – visa, por um lado, salvaguardar e promover a cultura popular de tradição e, por outro lado, valorizar e promover os diferentes patrimónios inerentes: humano, material e imaterial. Se no jogo e espaços cénicos, o espectáculo assenta no património edificado da freguesia – igreja do Mártir S.Vicente e casa Vale Flor de Infias -, já em termos de guião privilegia-se o imaterial, através de uma narrativa sustentada na investigação e na tradição oral. Assim se justifica, ao nível dos rituais, o arco de casamento e respectiva simbólica, a rica indumentária e demais figurinos, o repasto da boda, bem como os espécimes tocados, cantados e dançados. No entrecruzar dos patrimónios em referência, é notória e intencional a ênfase dada ao património primeiro, as gentes da nossa região geo-etnográfica baixo-minhota: homens e mulheres que herdaram, usufruíram, acrescentaram e legaram saberes, experiências, sentimentos, emoções, usos e costumes; vivências e convivências.


5. Igualmente de referir o “Serão/Sarau” evocativo do 10º aniversário dos “Serões do Burgo/Tertúlias Rusgueiras” realizado no teatro da Escola Secundária de Sá de Miranda em Março de 2014, com o espaço literalmente esgotado e a participação de vários grupos musicais e instrumentais, bem como de mais de duas dezenas de convidados “repescados”, seleccionados a partir das 72 edições até então realizadas, com a intenção de serem relembradas as temáticas na altura por eles próprios desenvolvidas.

Menção, ainda, para o “Serão/Tertúlia” (75ª edição -Bodas de Diamante), que teve lugar na Sede da Rusga, distribuído pelos dias 10 de Abril de 2015 (1ª parte) e 17 do mesmo mês (2ªparte) subordinado ao tema “Vidas Cruzadas – Confidências Partilhadas”, com o testemunho pessoal de vários convidados, entre os quais me encontrava, em representação da Junta de Freguesia de S.Vicente.


6. As Conferências Rusgueiras. Também no âmbito do 50º aniversário da Rusga de S.Vicente, seja-nos igualmente permitido relevar a 1ªedição das Conferências Rusgueiras/Arco Cultural – 2014, subordinada ao tema “Religiosidade popular – Crenças, cultos e promessas”, mais uma excelente iniciativa cultural que teve lugar no Museu D. Diogo de Sousa, em parceria com o Centro Regional de Braga da Universidade Católica Portuguesa e a Universidade do Minho. Apraz-nos referir o elevado grau científico dos vários painéis, onde intervieram especialistas portugueses e espanhóis. Aliás, e segundo a coordenadora da iniciativa, Aida Mata, as Conferências Rusgueiras” terão uma periocidade bienal, pelo que voltarão a realizar-se em 2016, tendo por tema “Festa e Romaria”.



Uma perspectiva da Expo Alminhas


Exposição “Há 50 anos a Rusgar”. Integrada, também, nas comemorações dos 50 anos da “Rusga de S.Vicente/Grupo Etnográfico do Baixo Minho”- para além de outras iniciativas que por certo deverão, ainda, ser levadas a cabo - saliente-se a magnífica exposição temática relativa à efeméride. Várias dezenas de peças, “celebram” este aniversário, de entre as quais se encontra o arco da “Rusga do Século XXI”, … “arco de plástico, mais moderno”, ali colocado “em jeito de provocação” para, deste modo, significar que na Rusga do século XXI, “os rusgueiros não levam trajes; vestem calças de ganga. Segundo José Pinto, “a tradição, para se manter, tem que se reactualizar no tempo, sob pena de não garantir a transmissibilidade. Se continuássemos a sair só de trajes, não tínhamos jovens”. 



Exposição “Há 50 anos a Rusgar”


Neste caso, permitam-me que alimente a esperança de que essa dita transmissibilidade não aconteça assim tão rápido quanto nos parece; é que as mudanças, sobretudo quando respeitam à tradição, sempre implicam alguma prudência e, por consequência, certos riscos a evitar, independentemente de sermos favoráveis e, por isso mesmo, bem compreendermos a inevitável dinâmica dos tempos… Jamais esqueceremos, todavia, que “defender o Património Cultural de um Povo é garantir, mais do que o seu presente, o seu futuro, o seu alimento” – Ademar Ferreira dos Santos, 1982; in ASPA 35. 





Fontes informativas:

· Várias edições do jornal “Diário do Minho”; Opúsculo/ historial da Rusga;
· Anotações e reflexões pessoais.



BRAGA, Agosto de 2015

Domingos Alves, 
Vogal para a Educação e Cultura da Junta de Freguesia de S. Vicente.



PS – A Assembleia de Freguesia de S.Vicente, na 7ª sessão ordinária de 08 de Abril de 2015 aprovou, por unanimidade, um Voto de Louvor pela passagem do 50º aniversário da Rusga de S.Vicente-Grupo Etnográfico do Baixo Minho referindo, entre outros pontos, os seguintes: “…Congratulamo-nos por ter na nossa freguesia um Grupo que tanto faz pela preservação das tradições da nossa região, não as deixando cair em esquecimento, nomeadamente através da forte dinâmica que empregam na sua divulgação; desejamos que a Rusga de S.Vicente continue a desempenhar o papel que até aqui tem vindo a realizar, e que continue a ser um orgulho para todos os vicentinos, em particular, e para todos os bracarenses, em geral”.